"
Uma bruma de chuva escurecia a manhã, lentíssima em clarear. Uma de nós precisava sair: minha mãe ou eu? Fui eu, com uma sombrinha preta. Desci na porta da rua os dois degraus e abri a sombrinha há muito tempo fechada. Saíram de dentro ciriricas grandes. Eu ia abrindo a sombrinha, abria junto o sol. Uma coisa desatava-se, a semente da claridade. Distinguia no ar, com a luz aumentando, muitas ciriricas, alguém me esperava para a alegria do corpo, tal qual nesta lembrança antiga que eu possuo: sol com chuva, de tarde. No caminho atrás da fábrica vai uma dona gordíssima de cabelo à-demi, exibindo sombrinha e ancas. É uma dona feliz, é uma dona engraçada, sem saber. É boa, boa, usa pó-de-arroz e vai me visitar com presentinhos.
É igualzinho sol com chuva casamento de viúva. Na minha lembrança essa dona caminha firme até uma casa e depois não sei mais o que acontece. É retalho de vida, desenho de almanaque, é sonho? O que seja, é do céu que vem. Não pode vir de outro sítio, o que me deixa assim picando de felicidade. É mais poderosa que o tempo a coisa orgasmática. Vige no sonho, em vigília, põe o corpo radioso, mesmo velho. É pré-cristã, não pagã. É assim: Deus é multívoco.
"
Adélia Prado
em Solte os cachorros
quinta-feira, dezembro 27, 2007
# 018
segunda-feira, dezembro 24, 2007
# 017
Um galo sozinho não tece uma manhã:
ele precisará sempre de outros galos.
De um que apanhe esse grito que ele
e o lance a outro; de um outro galo
que apanhe o grito de um galo antes
e o lance a outro; e de outros galos
que com muitos outros galos se cruzem
os fios de sol de seus gritos de galo,
para que a manhã, desde uma teia tênue,
se vá tecendo, entre todos os galos.
E se encorpando em tela, entre todos,
se erguendo tenda, onde entrem todos,
se entretendendo para todos, no toldo
(a manhã) que plana livre de armação.
A manhã, toldo de um tecido tão aéreo
que, tecido, se eleva por si: luz balão.
"
João Cabral de Melo Neto
Agradeço a João Cabral
pela poesia iluminada
e a todos que me auxiliam a sustentar
tecido tão aéreo: minha vida
(que existe em luz balão
pelos que me auxiliam a tecê-la)
Obrigado!
Um FELIZ NATAL e
um ÓTIMO ANO NOVO
POESIA na vida
de toldo nós
quinta-feira, dezembro 06, 2007
# 016
...você sabe que eu sempre rio,
mas às vezes eu mar de repente,
sem explicação di-sabores,
numa pororoca de sal e água
barriga salga em dias,
porque doce, sempre, engorda,
e temperar água é tê-la morna,
num soro sal-doce que acalma
...só então barriga nova,
na banha doce e tempo branco
e o caramujo ensina embaixo:
barriga cheia, barriga d'água...
domingo, outubro 14, 2007
# 013
- Sou brasileiro, falo português, mas não sinto saudade... não me obrigo a usá-la só porque tem na minha língua.
- ...mas você não se sente só?
- Solidão é diferente! Eu me sinto só. Mas sozinho é estar longe da presença de outros... se me sinto assim, eu me cobro a mudança: "tenho que construir mais relações, estar mais presente..." Agora saudade é cobrar a presença do outro, e isso eu não cobro! Os caminhos se dão na escolha de cada um (distante ou próximo). Só cobro o que está na esfera de mudança do meu eu, sozinho...
- Que egoísta!
- ...a saudade?!
segunda-feira, outubro 01, 2007
domingo, setembro 30, 2007
# 011
...com meu lápis
não soube desenhar
nem camelo nem leão,
mas ovelha e gato
(e um novelo de lã
que é quase
um ninho)
- transformações
de espírito domesticado
"
(...)
El niño es inocencia y olvido, un nuevo comenzar, un juego, una reuda que gira sobre sí, un primer movimiento, una santa afirmación.
Sí: para el juego de la creación, hermanos míos, hace falta una santa afirmación: el espíritu quiere ahora su voluntad, el que ha perdido el mundo quiere ganarse su mundo.
Tres transformaciones del espíritu os he mencionado: de cómo el espíritu se trocaba en camello, y el camello en león, y el león, finalmente en niño.
Así hablaba Zaratustra.
(...)
"
segunda-feira, setembro 24, 2007
# 010
- Seu filho?!!
- É, o caçula.
O mais novo, cansado, abrindo a porta.
- Tá estudando?! Tem que estudar!!!
Com o giro da chave, abriu os olhos.
- Oi, Salim...
...estende a mão, na trégua de orações cruzadas.
- Casa fica! Dinheiro fica! Com estudo te respeitam, te dão trabalho!
Profeta, com sotaque de areia. Ao invés de Cruzada, faz cócegas na barriga.
- Seu pai trabalhador! Trabalhou muito pra você estudar... o pai dele também!
Cantava sem dentes, num quase árabe. O pai empurrou a porta, olhando pra dentro. Nesse abrir, ele o enxergou como há muito não via: profecia de um passado (lembrança do pai).
- Tchau, primo!
Despediu-se primeiro, já no oriente médio da rua. As duas gerações se olharam num credo, enquanto passavam pela porta em silêncio.
Nesse canto, há lá o que se lembra
e o homem não esquece.
quinta-feira, setembro 20, 2007
# 007
"
Uso a palavra para compor meus silêncios.
Não gosto das palavras
fatigadas de informar.
Dou mais respeito
às que vivem de barriga no chão
tipo água pedra sapo.
Entendo bem o sotaque das águas.
Dou respeito às coisas desimportantes
e aos seres desimportantes.
Prezo insetos mais que aviões.
Prezo a velocidade
das tartarugas mais que a dos mísseis.
Tenho em mim esse atraso de nascença.
(...)
"
Manoel de Barros
em Memórias Inventadas
segunda-feira, setembro 17, 2007
# 006
- Qual o nome dela?
- Não sei ainda...
- ...que tal Nina?
Miudinha, ronronava no peito com coração acelerado
- Pergunta pra ela...
- Miouuuu! - num bocejo de quem acaba de mamar.
A miúda seguiu com ela no colo, pensando se tinha gostado do nome. Sentou na rede e começou a balançar. No gancho, o metal rangia, num movimento de vai-e-vém: "Miou-Niná, Miou-Niná, Miou-Niná...". Parou no meio ao perceber o som. No silêncio, disse pra ela:
- Já sei! É Miounina!
domingo, setembro 16, 2007
sábado, setembro 15, 2007
# 004
"
(...)
Eu não queria ser doutor, eu só queria ser fraseador. Meu irmão insistiu: Mas se fraseador não bota mantimento em casa, nós temos que botar uma enxada na mão desse menino pra ele deixar de variar. A mãe baixou a cabeça um pouco mais. O pai continuou meio vago. Mas não botou enxada.
"
Manoel de Barros
em Memórias Inventadas
quinta-feira, setembro 13, 2007
segunda-feira, setembro 10, 2007
# 002
- Mãe, tô co'a barriga doce!
Yiá secou as gota'sal d'olho amarelo.
Olho d'água tava seco já fazia muito.
- Por quê, minino?
- Comi muito - lambia seco a patinha do tiú.
Terra em que sol chovia só, reptil era banquete.
E o menino repi'tiu.
Com muito do pouco, ele já tava doce.
A'margura num tava nele,
só n'olho amarelo
do sol vermelho da idade.