sábado, março 22, 2008

# 024

Que são esses cavalos?
...polícia montada, pedindo pro carro sair.
A gente não tá no ponto.
Não, é mais pra cima. A gente tá bem no bueiro.
Vamos até o banco.
A seguro? ou a senhora em mim?
Seguro só pra atravessar rua.

Foi sozinha.
...que a senhora enxerga? Branco?

Se eu perguntasse me olhariam,
pois não se tira cisco do outro já assoprando.
Trago de infância ainda isso, surpresa boba
de branco no preto, traçado num ponto.
Um impulso freado: Vista Alegre serve?

Fiz sinal e subi junto, servia pra mim.
Me deixa no primeiro ponto da Pujol?
Onde a senhora vai descer?
Na Igreja.
Igreja? De Santana tá lá atrás.
Na batista. Desse lado mesmo.
Um prédio alto, com peixe enorme.

Se fosse de nascença, o peixe seria um milagre,
e o motorista sem nunca ter visto
(porque, também, nem todos crêem de nascença)
Boa Páscoa pro senhor!
A calçada tá a um metro. Cuidado com o cone.

Desceu, nem viu cone, nem calçada.
Foi direto à porta, sem tropeçar.
Sabia as escadas de ouvido e subiu no tato do pé.
O que a senhora enxerga? ...luz?

terça-feira, março 11, 2008

# 023

...sinto o mesmo,
pelo que parece contrário,
pois em mim vejo deus,
com angústias e imperfeições.
Reconheço beleza das larvas
e o que grita no eco do tempo
pela minha carne: Eu sou!


"
(...)
...falavam em devoção, amor e humildade. Posso assegurar que me esforcei, mas, durante todo o tempo em que houve um deus em meu mundo, não pude sequer me aproximar de meus objetivos. A humildade não era suficientemente humilde, e o amor era, em todo o caso, muito menor do que o de Cristo ou o dos santos, ou até menor do que o de minha mãe. Quanto à devoção, essa esteve sempre envenenada por dúvidas terríveis. Agora que Deus não está mais presente em minha vida, sinto que tudo isso é meu, sinto devoção perante a vida, humildade perante meu destino sem sentido, e amor para com as outras crianças também amedrontadas, atormentadas, cruéis.
"

Ingmar Bergman,
em Bilder

domingo, março 02, 2008

# 022

O orgulho dela carregou a TV sozinho, até o centro da sala, com uma polegada. A nora de Pasífae olhou em espanto, não esperava ver ao vivo a violência dos noticiários, em cores, pelo seu marido. Com um quarto de músculo, osso bem pesado, encheu a boca da esposa. Sangrou no ponto.

Na reprise da novela, ele ruminou até o jantar. Mugiu pra dentro reengolindo assunto em dobradinha. Encheu bucho a colheradas, porque com garfo ia pedir faca. E arrotou vaca olhando a carne que comia. Não tirava chifre da cabeça. E Pasífae o achava certo, porque o filho não errava - só respondia casmurro, dom passado desde o relho.

Durante Ave Maria, no jornal da rádio, vizinhas de receita perguntaram do regime confinado e encurralaram a campainha a ver Maria. Cadê sua nora? Berrante, a sogra tocou cheia de graça, "Tá dando leite! ... trouxe manteiga que pedi?". Ora queijo, ora manteiga, ora coalhada, derivava leite toda hora espantando moscas que juntavam a zumbir perguntas do novilho. E respondia em ora ação.


Bendita sois vós entre as mulheres, bendito o fruto de vosso ventre. Rogai por vós, os pecadores. E nessa prece, a boiadeira é quem guiava. Foi assim com o pai, por que não com o filho? Aceitava macho forte como touro, mas toureava. E se perguntassem na porta sobre o que ele fez, erguia parede, quantas necessárias, o protegia em labirinto, junto ao segredo de sua origem... minotauro.