quinta-feira, dezembro 27, 2007

# 018

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Uma bruma de chuva escurecia a manhã, lentíssima em clarear. Uma de nós precisava sair: minha mãe ou eu? Fui eu, com uma sombrinha preta. Desci na porta da rua os dois degraus e abri a sombrinha há muito tempo fechada. Saíram de dentro ciriricas grandes. Eu ia abrindo a sombrinha, abria junto o sol. Uma coisa desatava-se, a semente da claridade. Distinguia no ar, com a luz aumentando, muitas ciriricas, alguém me esperava para a alegria do corpo, tal qual nesta lembrança antiga que eu possuo: sol com chuva, de tarde. No caminho atrás da fábrica vai uma dona gordíssima de cabelo à-demi, exibindo sombrinha e ancas. É uma dona feliz, é uma dona engraçada, sem saber. É boa, boa, usa pó-de-arroz e vai me visitar com presentinhos.

É igualzinho sol com chuva casamento de viúva. Na minha lembrança essa dona caminha firme até uma casa e depois não sei mais o que acontece. É retalho de vida, desenho de almanaque, é sonho? O que seja, é do céu que vem. Não pode vir de outro sítio, o que me deixa assim picando de felicidade. É mais poderosa que o tempo a coisa orgasmática. Vige no sonho, em vigília, põe o corpo radioso, mesmo velho. É pré-cristã, não pagã. É assim: Deus é multívoco.
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Adélia Prado
em Solte os cachorros

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