terça-feira, outubro 19, 2010

# 072

De damasco o bolo e farelo de trigo, na esquina da árvore, ao chão: você me considerou. Não ía roubar às claras ele disse, mas mostrou a barriga e declarou fome, dois reais para comer. O senhor aceita um bolo? Dois pedestres no amarelo das relações. Cruzar aquela esquina foi por alguns passos não esquecer das luzes, pois não basta o sinal verde a um a não ser que o outro também o tenha. Ninguém o quis no farol e ele quis o bolo. Saindo da revolta do corpo sentou-se à sombra da árvore pra se iluminar mais calmo e comer depois de guardar o dinheiro.
O outro, levado pro intervalo da biblioteca, não teve café na tarde. E só tendo sobrado um teco, não pôs-se à mesa com a colega de trabalho porque sem muito a oferecer após o mendigo. Ofereceu a falta. Sem presença alguma da comensalidade, não soube dividir o pouco não dado do bolo que mal o alimentaria. Não percebeu ali o que sustentaria o espírito, doce na barriga dos que não têm fome de grão, sim de grandura. Fome que não é do corpo, nem da mente, da falta de alimento que não é do trigo, nem de damasco. A falta da consciência no instante que se dá por filtros de ilusão que enxergam pouco o que é claro: se há apenas uma maçã, ofereça a tampa. Ela ofereceu a dela, a fruta não seca, e com isso a realidade: há dois reais para comer. O óbvio de antes, de ajudar a um outro de classe, se ofuscou neste relance da impercepção com o mesmo, o outro semelhante com quem não soube dividir.
Só depois na sombra é que fica clara essa luz, quando a tampa da maçã na boca do estômago cobre os farelos da barriga adoçada. A digestão é um processo ácido que ensina e antes dela não há sabedoria, nem consideração.