sexta-feira, novembro 06, 2015
# 096
Hoje faz cinco anos que ele saiu do corpo. Aos poucos, sem perceber, foi perdendo vocabulário. Não sabe hoje dizer o que é, não tem. Ser e ter são verbos distintos, mas ele ainda mistura a conjugação de um no outro. Esqueceu das aulas de inglês, não está. Ser não é estar. Hoje, faz cinco anos que não está no corpo que tem, que é. Releu o caminho que foi profetizado. Atravessou ao norte de Minas Gerais um túnel, antiga estação de trem abandonada, três minutos inteiros de breu. Sem limite. Chegou ao outro lado e se deixou. Não é aquele corpo, nem mesmo a mente. Voltou e não mais sabia. É, sem saber. Fez um vídeo disso, que tinha esquecido.
sábado, julho 04, 2015
# 095
"
Eu sei que a gente se acostuma. Mas não devia. A gente se acostuma a morar em apartamentos de fundos
e a não ter outra vista que não as janelas ao redor.
E porque não tem vista, logo se acostuma a não olhar para fora.
E porque não olha para fora, logo se acostuma a não abrir de todo as cortinas.
E porque não abre as cortinas logo se acostuma a acender cedo a luz.
E à medida que se acostuma, esquece o sol, esquece o ar, esquece a amplidão.
A gente se acostuma a acordar de manhã sobressaltado porque está na hora.
A tomar o café correndo porque está atrasado.
A ler o jornal no ônibus porque não pode perder o tempo da viagem.
A comer sanduíche porque não dá para almoçar.
A sair do trabalho porque já é noite.
A cochilar no ônibus porque está cansado.
A deitar cedo e dormir pesado sem ter vivido o dia.
A gente se acostuma a esperar o dia inteiro e ouvir no telefone: hoje não posso ir.
A sorrir para as pessoas sem receber um sorriso de volta.
A ser ignorado quando precisava tanto ser visto.
A gente se acostuma a pagar por tudo o que deseja e de que necessita.
E a lutar para ganhar o dinheiro com que pagar.
E a pagar mais do que as coisas valem.
E a saber que cada vez pagará mais.
E a procurar mais trabalho, para ganhar mais dinheiro, para ter com que pagar nas filas em que se cobra.
A gente se acostuma à poluição.
Às salas fechadas de ar condicionado e cheiro de cigarro.
À luz artificial de ligeiro tremor.
Ao choque que os olhos levam na luz natural.
Às bactérias de água potável.
A gente se acostuma a coisas demais, para não sofrer.
Em doses pequenas, tentando não perceber, vai afastando uma dor aqui, um ressentimento ali, uma revolta acolá.
Se a praia está contaminada a gente molha só os pés e sua no resto do corpo.
Se o cinema está cheio, a gente senta na primeira fila e torce um pouco o pescoço.
Se o trabalho está duro a gente se consola pensando no fim de semana.
E se no fim de semana não há muito o que fazer a gente vai dormir cedo e ainda fica satisfeito porque tem sempre sono atrasado.
A gente se acostuma para não se ralar na aspereza, para preservar a pele. Se acostuma para evitar feridas, sangramentos, para poupar o peito.
A gente se acostuma para poupar a vida. Que aos poucos se gasta, e que gasta de tanto se acostumar, e se perde de si mesma.
"
Marina Colasanti
em Eu sei, mas não devia
em Eu sei, mas não devia
quinta-feira, julho 31, 2014
# 094
Contou até onze mas
depois lhe vinha apenas uma dúzia. Poderia seguir com treze,
catorze, ao infinito, parou no onze com uma dúzia. Apenas a palavra,
sem número... o que vem antes? E lembrou de culturas
tribais que compunham frases inteiras para exprimir um número. A
palavra antes de tudo, o verbo no início. Balbuciava baixo, contando as crianças enquanto apertava o balão. Elas o olhavam como quem contava as voltas numa tabuada do olhar pelos
gomos da bexiga. Um ábaco a bexiga. Duas vezes seis. Era esse o número de voltas a
dar. Meia dúzia de crianças no salão. O palhaço sabia o que era o
seu dobro, só não se lembrava do número, a forma escrita arábica,
e dobrava a comprida bexiga até formar a cabeça de um cão.
Definia um cachorro amarelo em suas mãos com ar da bomba de uma
bicicleta pois dessa vez não trouxe o cilindro de hélio. Esqueceu
também... como? A mulher que o contratou o olhava impaciente ao perguntar. As
bexigas não voavam ao teto como prometido, restavam ao chão num
canil de látex com uma só flor. Uma margarida de borracha. Sabia
fazê-la de cabo verde e pétalas de outra cor, corola colorida. Corolida. Achava graça no trocadilho infame ao ensinar a margarida de bexiga. Mas
ninguém riu. Não entendiam de palavras e faltou gás hélio pra dizer
isso às crianças em outra voz. Quantos cachorros fizemos? Sete,
contaram no chão. Faltariam cinco e então lhe responderiam
desenhando o número. Fez a flor antes para se acalmar, estava aflito
com a amnésia pontual. Seria algo no cérebro, vascular. O branco de
um número. Seu pai teve às voltas dessa mesma idade um derrame, na matemática
genética. Distraiu-se com a flor corolida. Deu-a à mulher que o
contratou pelo catálogo. Ela segurou por um tempo, fez que a
cheirava como se entrando no espírito do jogo pelo filho, depois jogou ao chão.
O salão de jogos e festas, um cubículo do prédio com paredes de
vidro. Um aquário em mar de balões e cães de borracha. Todos
ao chão, só ele de pé a repetir mecanicamente o movimento. E a
contratante numa cadeira, ao lado da mesa de doces. As crianças
queriam o cão. Repetiu mais uma vez o cachorro, ao ponto da mulher
duvidar se ele sabia fazer algo além daquilo. Tinha errado: O senhor é palhaço? Sim. Mas também faz mágica?
Posso fazer. Um pacote. Comprou bolo de morango na padaria, aumentou
os salgadinhos. Economizara um tanto que nem sabia. Qual valor de um
mágico, mãe? Vai ter palhaço, filho. Eu quero um mágico. E
resolveu assim o presente do menino, com mágica de palhaço, o sumiço de um número.
A festa de
aniversário está triste, pensou o aniversariante. Estranha, num
problema bobo de matemática infantil: não tinha crianças. Algumas
poucas no meio de outros adultos. Era o meio de julho, o meio das
férias da escola, do clube. O meio de tudo. Ninguém viria pois,
viajando. Ninguém se lembra no meio de outra ação. Até ele mesmo
viajara com sua mãe das outras vezes. Mas esse ano pediu uma festa,
como as das outras crianças da escola. Uma festa com um mágico era
o que queria, como os que passavam na televisão, com lábios
pintados de preto. Os mágicos, que apareciam até em programas de
culinária, viriam ao seu aniversário. Uma ilusão. O que lhe veio
foi um palhaço, contratado pela mãe num pacote barato. De batom
vermelho e borrado. E as crianças da escola, nenhuma. Conjunto
vazio. Meia dúzia de vizinhos por conta da comida de graça, nem amigos de verdade. Ilusionistas. O palhaço ainda chegou
atrasado, todo apressado. Pingava gotas brancas do rosto. Tinha se
maquiado no carro, mas já suando de nervoso. Tinha na noite anterior
saído com os amigos do grupo do teatro vocacional e esqueceu que no
dia seguinte à tarde tinha que animar uma festinha. A mãe o
contratou com esse diminutivo. Uma festinha simples, sem ter muito
como pagar. O diminutivo adequava o pagamento. Queria continuar na
escola de teatro de algum jeito, aceitava os bicos para pagar o
curso. Um dia faria a mágica de comer e viver do que escolheu,
profetizou. Foi essa verdade que disse à mulher ao ser questionado.
Não respondeu exatamente assim, tão pleno e claro, mas que poderia
fazer tal mágica, por essa perspectiva. Nada além. Sem truque. Os
palhaços são realistas, não mentiu ao telefone. No salão do
prédio a mulher que o contratou o esperava sem saber dessa
integridade. Estava toda arrumada, mas cheirando a suor. Íntegra
também. Tinha enfeitado o aquário com balões grudados nos cantos e
nas paredes, mas que aos poucos foram caindo, como as gotas da pele.
Ela tinha maquiado a sobrancelha de modo permanente para não se
borrar mais, pseudo-tatuagem de salão estético, uma curva marrom
sobre os olhos. Sempre triste agora. Não tinha pêlos a definir
outra expressão. Olhava para ela sem conseguir disfarçar, a
sobrancelha estava torta. E ela o inquiria pela maquiagem, desfeita.
O menino olhou o encontro dos dois, desejou sumir. Queria uma mágica,
sumir dali. Mas era seu aniversário. Não se sabia naquele instante
qual a pior máscara no rosto.
O palhaço era um
menino. Tinha mais de vinte anos, mas era um menino, no jeito e na
estrutura, não tinha se desenvolvido direito. O achavam burro por
isso, como se retardado de algum modo. Um amigo falou isso a ele uma
vez. Não tinha amigos, mas esse o xingou. Gerou vínculo assim. Meu
amigo, pensou. De fato um bobo. Lembrou dos bobos de Goiás que seu
pai lhe contava, filho de casamento entre primos, consangüíneos,
sempre nascia um com alguma idiotia. Não serviam a mais nada além
de trabalhos desimportantes e repetitivos. Lhe trouxe um bobo pra
ajudar no quintal. A casa em reforma do pai. Se emprestavam os bobos
na época, para carregar pedras, construir calçadas. Alguns nasciam
mudos, outras surdas, e eram por isso ainda mais servis. Serviam ao
descarrego da violência cotidiana, na dose que cabe a todo dia. E a
noite o cú. Bobo ou boba, se serviam dos seus cus. Não teriam
depois como reclamar, não gerariam filhos. E eram todos sem voz,
mesmo que não fosse mudo. Mesmo os que sabiam e não eram bobos,
nada falavam. Não se ouvia. Mesmo se não fosse noite. De dia, atrás
do muro construído, perto do tanque em reforma, depois da marmita
que ela trazia. A boba. Era isso junto ao prato de comida. Uma
sobrevivência. Não é melhor viver? Não é melhor pensar. Por isso
ainda mais bobo se ficava e se seguia. Seguiam todos, não só em
Goiás. Todos os dias, no mundo. Não reparava se o filho era também
mais um. Não via o sangue. Não lembrava se a mulher com quem deitou
era uma prima. E o filho se dizia artista, podendo ser tudo então, o
que o torto permitia. Até filho de uma prima. Não sou bobo, pai,
sou artista. Um palhaço, com namorada. Não dava o cú.
Tinha rompido com a
namorada antes da festa. E foi beber com os amigos. Colegas, do curso
de teatro. Todos atuam. Bebeu demais e queria traí-la. Mas não
teria mais como, ela terminou antes. Era esperta, mais que ele.
Rompeu. Apenas bebeu então, pra não pensar mais. E acordou tarde no
dia da festa. Viu a mulher que o contratou, daria festinha ainda.
Interpretava pelo sexo essa palavra, o diminutivo. Canastrão. Assim ouviu a voz
ao telefone. Era marcada do tempo, tinha um filho que fazia hoje oito
anos. Mas daria. Cheirando a suor. Entre os dois seios o perfume.
Levemente erguido. Chegou assim, nessa malícia adulta totalmente em
descompasso ao ambiente de crianças. Brigadeiros, beijinhos.
Beijinhos. A linguagem teria que ser outra, não entenderiam
trocadilho. Todos bobos para ele, naquele momento. E imaginou a
sodomia, levemente excitado, como se enchesse uma bexiga a bomba. Uma
camisinha. Se assustou com a pequenez do pensamento e o próprio corpo onde já
estava. Da bexiga à mãe, depois ao filho. A passar a violência do
dia-a-dia na sua mente atrás da máscara. Atrás da calça. Atrás
do rabo. Como peixes que se comem num aquário para sobreviver. Um
peixe humano. Gotejando branco. Não lembrou o que fazia. Era um
cachorro. Desimportante, repetitivo. Mediu o rosto com a própria mão
a imaginar o estrago do suor na face, enxugando as extremidades. Em
vergonha, sem sustentar a cena. Repetiu para se concentrar em alguma coisa. Pensou em
números. As crianças o viam tocar as bordas da face como se tomasse
alguma medida para a escultura. Como no tempo antigo, nas medidas de
construção judaica. Um côvado, um palmo. Um rosto. O palhaço
judeu, a judiar bexigas. Pensava no absurdo a que sua mente o levava e resolveu contar
as voltas da bexiga, formando a imagem de números em sua cabeça.
Nove, dez, onze... uma dúzia. Não sabia mais formar o doze. Esqueceu.
Formava apenas a palavra e o cachorro em suas mãos. Um dia triste.
Queria um coágulo que lhe tapasse essa lembrança e não o número.
Quando foi ver, duas cabeças no mesmo cão. Contou errado. O cão
coxo, sem pernas. Piada do inferno. Cérebro em falha... ou Cérbero? O cão solto
da mitologia, mais antigo que os judeus, com duas cabeças apenas, um trocadilho. O
homem sempre o mesmo, a perder-se nisso. Desimportante e repetindo... A mulher se indignou.
O ar pesado descia
os ombros e os balões. O pulmão é também uma bexiga. Quanto mais
respirava mais se contaminava e o que exalava não era alívio. Até
onde aquele dia? Queria esvaziar do ar o ambiente. Mas enchia balões.
E estavam todos ali, no meio de tudo. Na volta longa em torno do Sol
junto ao menino, a volta no eixo da Terra em pleno julho. Em pleno meio. O meio
elástico que envolve todo mundo, ar viciado e todos ali, no meio de tudo, uma bexiga. Estourou. As crianças viram o relógio atrás do
palhaço e pediram algumas para irem embora. Fica, vai ter bolo, a
mãe falava, tudo o que o menino não queria. Vamos colocar uma
música. Era essa a deixa ao palhaço na gravidade da voz, sem hélio. Fim do número
de mágica que não vinha. Não mais número, nem mais festa, nem
palavra lhe servia. Ele se virou e piscando viu atrás de si um relógio
pendurado. O 12. Ali o início e o fim de
tudo, o devir de toda hora, todo minuto. Da volta menos longa até um
dia. O doze ao alto, não a dúzia. Ficou paralisado ao ver o número,
como o cachorro deformado em suas mãos. O número bonito que não
vinha e veio todo borrado de um derrame, a máscara desfeita que
caía. O palhaço retardado ao fim de tudo. A mãe no som, desligada,
não mais ouvia. E o presente do menino a realidade, com mais
salgado à mesa até o outro dia.domingo, julho 27, 2014
# 093
Na foto estaria toda a família. O pai não queria
aparecer junto porque estava muito magro, desfigurado pela doença,
um outro homem na cabeça dele. Não queria deixar aquele corpo como
registro. Mas não se esquivou assim ao olhar o rosto da filha. Disse
que ainda estava de pijama, descabelado, que tinha antes que cuidar
do papagaio. Era manhã de domingo e a mãe sabia que aquela ação
iria pelo menos até o almoço. Depois o cansaço da sesta, a espera
da sobremesa, o início do jogo, o final da Copa, um café ao
escurecer, sem luz. Uma recusa completa. Sabia ler o código, o que o
papagaio queria dizer, todo o tempo que levaria para limpar a gaiola
do bicho e a cadeia de ações. A sua filha pegou essa máquina
emprestada na escola só para tirar essa foto. Mentira, pensou. A
filha também, mas concordou com a mãe ficando em silêncio, para
convencer o velho. Não queria mentir a ele, ainda mais agora, tão
doente. Acreditava que ele estava num ponto do sofrimento do corpo
que passava a perceber melhor a verdade, como se a doença oferecesse
isso, o atrás da máscara. Quanto mais grave, mais clara a visão.
Clarividente. Ao mesmo tempo ele não discordou de nada, ficou em
silêncio também, pois nunca tinha visto a filha com uma câmera
reflex na mão e com uma bobina de filme preto e branco. Uma câmera
com filme, reparou. Muito esforço fora do tempo de adolescente para
uma manhã de domingo. Talvez seja verdade. Viu o esforço da filha
em colocar o filme sem velar.
A máquina era da vizinha, tinha acabado de emprestar. Seria para tirar-lhe uma foto antes que partisse, terminou de dizer. Não quis dizer morrer à vizinha tão nova, disse antes que partisse como quem viaja e não volta, como quem deixa fotos e está sempre presente ao ser evocado na imagem. Mas a vizinha entendeu que o verbo usado se referia ao pai da pedinte, pois numa fração do instinto sentiu que o verbo partir poderia se referir a qualquer um ali, até mesmo a elas que se olhavam na porta. Não a convidou a entrar, deu-lhe a câmera emprestada. Só tinha aquela, com filme preto e branco. O pai não deixaria emprestar as digitais. Era bem mais nova a vizinha, menos de dez anos, idade em que se emprestam as coisas dos outros sem se perceber o real valor de cada objeto. As câmeras digitais eram apenas mais novas, não melhores, nem mais caras. Pensou até em não emprestar nada quando a amiga lhe pediu, mas todos ali na rua sabiam que ela era a filha do fotógrafo. As fotos taggeadas, a frase "minha pequena modelo" como nome de pasta entre os álbuns do perfil do pai. Não tinha como negar, era uma menina com um book, ninguém tinha uma imagem tão profissional quanto a dela entre os seus amigos da rede social. Em algumas nem parecia tão criança, madura nos instantes congelados. Mas a vizinha lhe veio assim de supetão e a pegou em movimento, desarmada e completamente jovem. Não sabia o que era câncer ainda, e isso a abalou. Empresto a máquina sim, vou ver o que meu pai tem. Subiu a escada do sobrado e foi procurar uma câmera enquanto lembrava o nome da amiga. Laura, lembrou depois, dos posts do Facebook, que não era da escola mas vizinha, a do pai com câncer. Pensava num caranguejo sempre que lhe diziam essa palavra, pois assim lhe foi apresentada desde que nasceu em julho. Não é isso, é uma doença, como se espalhasse no corpo um veneno de escorpião. Eu sei que quer dizer mais de uma coisa essa palavra. Interrompeu-a porque a imagem de um escorpião não a ajudaria a entender agora, formaria ainda mais o abstrato na cabeça, como um mapa astral de Susan Miller, ou Horácio Quiroga lhe predizendo uma má sorte no horóscopo do dia. Se baterem na sua porta, é porque você pode atender, Câncer, 13 de julho de 2014.
A máquina era da vizinha, tinha acabado de emprestar. Seria para tirar-lhe uma foto antes que partisse, terminou de dizer. Não quis dizer morrer à vizinha tão nova, disse antes que partisse como quem viaja e não volta, como quem deixa fotos e está sempre presente ao ser evocado na imagem. Mas a vizinha entendeu que o verbo usado se referia ao pai da pedinte, pois numa fração do instinto sentiu que o verbo partir poderia se referir a qualquer um ali, até mesmo a elas que se olhavam na porta. Não a convidou a entrar, deu-lhe a câmera emprestada. Só tinha aquela, com filme preto e branco. O pai não deixaria emprestar as digitais. Era bem mais nova a vizinha, menos de dez anos, idade em que se emprestam as coisas dos outros sem se perceber o real valor de cada objeto. As câmeras digitais eram apenas mais novas, não melhores, nem mais caras. Pensou até em não emprestar nada quando a amiga lhe pediu, mas todos ali na rua sabiam que ela era a filha do fotógrafo. As fotos taggeadas, a frase "minha pequena modelo" como nome de pasta entre os álbuns do perfil do pai. Não tinha como negar, era uma menina com um book, ninguém tinha uma imagem tão profissional quanto a dela entre os seus amigos da rede social. Em algumas nem parecia tão criança, madura nos instantes congelados. Mas a vizinha lhe veio assim de supetão e a pegou em movimento, desarmada e completamente jovem. Não sabia o que era câncer ainda, e isso a abalou. Empresto a máquina sim, vou ver o que meu pai tem. Subiu a escada do sobrado e foi procurar uma câmera enquanto lembrava o nome da amiga. Laura, lembrou depois, dos posts do Facebook, que não era da escola mas vizinha, a do pai com câncer. Pensava num caranguejo sempre que lhe diziam essa palavra, pois assim lhe foi apresentada desde que nasceu em julho. Não é isso, é uma doença, como se espalhasse no corpo um veneno de escorpião. Eu sei que quer dizer mais de uma coisa essa palavra. Interrompeu-a porque a imagem de um escorpião não a ajudaria a entender agora, formaria ainda mais o abstrato na cabeça, como um mapa astral de Susan Miller, ou Horácio Quiroga lhe predizendo uma má sorte no horóscopo do dia. Se baterem na sua porta, é porque você pode atender, Câncer, 13 de julho de 2014.
O irmão mais velho da família estava na feira a
comprar melão. O pai doente tinha lhe pedido em segredo isso na
noite anterior. Estava com desejo de melão. Achou absurda essa
revelação pelo modo que lhe chamou como filho. Henrique, Henrique.
A mãe gritando seu nome, enciumada, e depois dizendo que o pai
queria lhe falar a sós no quarto. Foi fazer chá enquanto eles
conversariam, mas já iria trazer. Traçou assim um tempo,
orquestrando ao mínimo as revelações possíveis. Homem a homem,
ficaram os dois no quarto sobre a cama. Ele é o mais velho, sabia já
a senha das contas, ajudava em todas as questões dos Bancos, todos
os segredos se lhe podiam confiar. Que este homem ainda tem a dizer?
Quero melão, não o amarelo, o japonês, aquele rugoso. O filho
o olhou sem entender. Não fala pra sua mãe, ela vai achar que é
frescura. O filho concordou com a cabeça como quem recebe um trote
surrealista do além disfarçado em trajes de dia-a-dia. De algum
modo isso o fez perceber o momento, mais real e verdadeiro, como o
dom espalhado da doença que revela por delírio. A pele do seu pai
estava amarelada e lisa, o melão não, não poderia. E o mais óbvio,
eram japoneses. Sansei, na verdade. O pai nissei. De todo modo,
japoneses, como o melão assim vendido na feira, mas plantado nessa
terra. O leito da cama em febre lhe rememorava as origens, pensou,
como se aquilo viesse naturalmente por estar perto do fim. Lembrou do
altar de incenso na sala com o nome da família em kanji, o pai
desenhou os ideogramas, que ele, por ser mais velho, seria obrigado a
cuidar. O primogênito. Herdou o cabelo e a voz, agora as orações e
as oferendas de alimento em culto a antepassados. Pensou tudo aquilo
em confusão, ouvindo o pai tossir seco e respirar com dificuldade. A
doença no pulmão, do tamanho de uma fruta. Tentou organizar assim
os pensamentos para não esquecer da memória ali formada, como um
feirante que empilha as pêras para elas não cairem de uma vez, uma
narrativa de cuidado, que as frutas ensinam sem frescura. A mãe
entrou com o chá. Serviu-os em silêncio. Todos, como numa cerimônia
de chá verde, mas era camomila.
A mãe ajeitava as flores do quintal para compor o
quadro da filha. Era domingo, mas estava acordada desde cedo,
desperta há muito tempo, sempre com energia. Sabia que cabia às
mulheres da família trazer graça ao cotidiano. Lembrava dos
aniversários, fazia surpresas, escondia ovos na Páscoa. Percebeu
que ensinou isso a filha e sorriu quando viu a menina com aquele
tamanho de máquina para tirar uma foto de todos, antes mesmo do
café. A graça não seria algo mínimo, pois é tudo o que nos mais
revela. Um insuflo de vida para qualquer instante que se congele. E
aquele tamanho de câmera, com película sem cores, a fazia ver que a
filha entendia isso, em plenitude. Todos tinham celular com foto, mas
ela buscou uma câmera. Preto e branco. Percebeu que a filha
adolescente não era mais menina, mas mulher. Não pelo corpo, que já
estava mudado e menstruado antes mesmo do pai começar a ficar
pálido, mas em espírito. E material. Como as sutis gradações da
prata quando imprimem os cristais no papel de fotografia, para então
desenhar contornos, em tons sutis de cinza que nunca chegam ao preto
puro, e revelam assim melhor a idade. Uma maturação perceber tudo
isso, pensou. Você vai tirar essa foto, vou pegar um paletó pra
você. E subiu ao quarto para pegar um paletó ao marido. Intuiu que
ele não queria aparecer daquele jeito na foto, mas o paletó com
ombreiras lhe resgataria o corpo do passado. Escolheu o azul mais
claro, chegou a pensar que ficaria melhor numa foto em preto e
branco.
Não vou tirar foto agora, o Henrique nem chegou. Como
não, pai, ele tá na cozinha. Tinha acabado de chegar. De fato não
o ouvira, de tanto que o papagaio lhe cantava na orelha o hino
nacional. Deixou o pássaro no poleiro e foi à porta da cozinha, viu
o filho colocando melões na fruteira. Sorriu. Sorriu ainda mais
quando viu sua esposa lhe trazendo um paletó, toda contente. A mesma
graça de sempre. Viu ali uma família num domingo de manhã, e ele
sem ter mais como resistir. O corpo já estava mais livre. Colocou o
paletó, e pediu para tirarem a foto na parte de fora da casa,
debaixo do papagaio. Vai parecer um índio de cocar, pai. A luz ali é
melhor. Foram todos pra fora. Henrique sem entender seguiu, já tendo
aceito os trotes da vida. A mãe chegou a colocar uma flor no cabelo.
O filho se agachou. Laura, tensa com os recursos mirou no visor
esperando a agulha do fotômetro. Você sabe mexer nisso? Cala a
boca, disse ao irmão. O pai riu. A mãe reanimou a pose de todos, a
não deslegitimar a filha. Uma foto importante da família. Até o
papagaio em silêncio. Só o pai de paletó e pijama.
sexta-feira, dezembro 20, 2013
domingo, janeiro 20, 2013
# 090
Ele disse:
“Você não pode nadar em rio. Toda água traz um destino e o seu será abreviado se não ouvir o que ela diz: a morte te encontrará num rio antes do tempo.”
O sacerdote sabia interpretar os reflexos e os desenhos na água. É possível prever o futuro pelo que se reflete num rio. “A água de um rio é o próprio movimento do tempo, um oráculo”, disse ele
Se a água é turva ou clara, se é violenta, se o rio corre mais rápido, se explodem bolhas na superfície. “É de boa sorte quando um peixe pula durante a previsão”, ele disse. Hoje é difícil haver previsão de rio nessa cidade.
Eram muitas oferendas, sem uma lógica clara. O que cada um oferta ao rio, o rio da aldeia, é matéria de outra poesia. Eu sempre tive fobia de entrar no Tietê, de não enxergar nada... hoje estranho rio que tenha visibilidade.
São Paulo, 22 horas e 19 minutos, trânsito livre na marginal. Carta do Ouvinte:
"Que futuro se observa em água tão pesada e oleosa? Já vi nessa água mala com dinheiro, jacaré-de-papo-amarelo, mulher dentro de mala... o rio é só presente, e traz em si a morte e a ruína antes do tempo.
Passado e futuro formam juntos uma matéria líquida. Me perguntam se eu mergulho para reviver o Tietê do passado, como se perguntassem se eu mergulho para reencontrar um rio no futuro...”
Contou o mito da rã. A rã achava que o rio passava à margem dela. E ela estava sentada ali (na margem) desde o começo do mundo, bem antes do rio fazer leito para passar. A rã acreditava que tinha a importância de chegar primeiro, assim como as garças que tiveram um homem sentado à sua beira.
O homem cria pra si esse senso da primazia. Tudo é o homem, sem humanismo. O rio se torna marginal, à margem dos carros, à margem do que construímos, sem acesso permitido.
Que imagem diz futuro?...
...a água deu um espelho para refletir, mas o que refletimos?
Que imagem diz futuro?...
...a água deu um espelho para refletir, mas o que refletimos?
quinta-feira, setembro 13, 2012
# 089
"
Leopardos e abstrações rondam a Casa.
E as mãos, o ato puro pretendendo. Ainda
Que eu soubesse o que tudo vem a ser,
A idéia, a garra, de mim mesma não sei
A fonte que gerou tais coisas nesta tarde.
Leopardos e abstrações. Que vem a ser?
Roxura, ansiedade? Memórias de Qadós,
Soberba e desafio se fazendo ronda
Plúmbeo Qadós diante da luz de Deus?
Se as tardes se fizessem meninice
Para que eu descansasse. Se as mãos
Fossem as mãos de Agda, eu decerto cavava.
E morrendo, descobria a mim mesma
Me fazendo leopardo e abstração
Na ociosa crueza desta tarde.
"
Hilda Hilst
em Poesia Completa
Leopardos e abstrações rondam a Casa.
E as mãos, o ato puro pretendendo. Ainda
Que eu soubesse o que tudo vem a ser,
A idéia, a garra, de mim mesma não sei
A fonte que gerou tais coisas nesta tarde.
Leopardos e abstrações. Que vem a ser?
Roxura, ansiedade? Memórias de Qadós,
Soberba e desafio se fazendo ronda
Plúmbeo Qadós diante da luz de Deus?
Se as tardes se fizessem meninice
Para que eu descansasse. Se as mãos
Fossem as mãos de Agda, eu decerto cavava.
E morrendo, descobria a mim mesma
Me fazendo leopardo e abstração
Na ociosa crueza desta tarde.
"
Hilda Hilst
em Poesia Completa
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