quinta-feira, setembro 13, 2012

# 089

"
Leopardos e abstrações rondam a Casa.
E as mãos, o ato puro pretendendo. Ainda
Que eu soubesse o que tudo vem a ser,
A idéia, a garra, de mim mesma não sei
A fonte que gerou tais coisas nesta tarde.
Leopardos e abstrações. Que vem a ser?
Roxura, ansiedade? Memórias de Qadós,
Soberba e desafio se fazendo ronda
Plúmbeo Qadós diante da luz de Deus?
Se as tardes se fizessem meninice
Para que eu descansasse. Se as mãos
Fossem as mãos de Agda, eu decerto cavava.
E morrendo, descobria a mim mesma
Me fazendo leopardo e abstração
Na ociosa crueza desta tarde.
"


Hilda Hilst
em Poesia Completa

sábado, agosto 04, 2012

# 088

"
- Fui me confessar ao mar.
- E o que ele disse?
- Nada.
"


Lygia Fagundes Telles
em Confissão

terça-feira, julho 03, 2012

# 087

"
(...)

O Crisóstomo respondeu que não lhe faltava nada, estava inteiro. E o rapaz pequeno disse-lhe que então ele devia passar a ser o dobro. Ser o dobro, disse. O pescador abraçou-o de encontro ao peito. Era o seu filho génio, o que sabia matemática e que sabia fazer caldo verde e domesticar os cães como ninguém. Era o seu filho génio, com as palavras que lhe faltavam, talvez com a coragem que lhe faltava. E o homem sorriu. O pescador sorriu, acabando de redobrar a esperança e julgando que outra vez poderia arriscar o amor.
À noite, sozinho diante da sua casa, o mar todo apaixonado por si, o homem que chegou aos quarenta anos sentou-se novamente diante da inteligência toda da natureza. Estava ainda de coração partido, porque falhara nos amores e os amores podiam ser tão complicados, mas havia ficado mais forte, agora.
Quem tem menos medo de sofrer, tem maiores possibilidades de ser feliz.
O pescador pensou.
E disse à natureza que queria encontrar uma mulher simples, uma que gostasse de viver numa casa pobre com um pescador humilde que tem um filho que é um génio. Um pescador que, por loucura ou ingenuidade, fala baixinho com a areia. Para ser o dobro, disse ele, era para ser o dobro e em dobro ter o que fazer da vida e ter o que deixar ao filho.
No dia seguinte, quando acordava para preparar o pequeno-almoço e mandar o rapaz pequeno à escola, o Crisóstomo viu pela janela da cozinha uma mulher sozinha, sentada com exatidão no lugar onde se sentara ele. A falar sem ninguém e para ninguém. Certamente ali só parcial. Uma mulher incompleta.
Estava uma mulher a falar sozinha no seu lugar, na sua areia, diante do seu mar, numa brisa fresca que a manhã trazia, as cores ainda muito aguadas da timidez do sol e da limpidez da paisagem.
O homem que chegou aos quarenta anos sorriu, e aquele sorriso já não era o mesmo do dia anterior. Já não era como nenhum outro do passado. Era o dobro de um sorriso.
"

Valter Hugo Mãe
em O filho de mil homens

segunda-feira, junho 04, 2012

# 086

"
Tenho um livro sobre águas e meninos.
Gostei mais de um menino
que carregava água na peneira.

A mãe disse que carregar água na peneira
era o mesmo que roubar um vento e sair
correndo com ele para mostrar aos irmãos.

A mãe disse que era o mesmo que
catar espinhos na água
O mesmo que criar peixes no bolso.

O menino era ligado em despropósitos.
Quis montar os alicerces de uma casa sobre orvalhos.

A mãe reparou que o menino
gostava mais do vazio
do que do cheio.
Falava que os vazios são maiores
e até infinitos.

Com o tempo aquele menino
que era cismado e esquisito
porque gostava de carregar água na peneira

Com o tempo descobriu que escrever seria
o mesmo que carregar água na peneira.

No escrever o menino viu
que era capaz de ser
noviça, monge ou mendigo
ao mesmo tempo.

O menino aprendeu a usar as palavras.
Viu que podia fazer peraltagens com as palavras.
E começou a fazer peraltagens.

Foi capaz de interromper o vôo de um pássaro
botando ponto final na frase.

Foi capaz de modificar a tarde botando uma chuva nela.

O menino fazia prodígios.
Até fez uma pedra dar flor!
A mãe reparava o menino com ternura.

A mãe falou:
Meu filho você vai ser poeta.
Você vai carregar água na peneira a vida toda.
Você vai encher os
vazios com as suas
peraltagens
e algumas pessoas
vão te amar por seus
despropósitos
"

Manoel de Barros
em Exercícios de ser criança

segunda-feira, abril 16, 2012

# 085

* toda madrugada traz uma hora perigosa, cuidado com ela.

sexta-feira, março 23, 2012

# 084

suco? suco não.
água? água não.
e sim? sim não.

...ele aprendeu a falar não.
quantos anos ele tem?

segunda-feira, março 19, 2012

# 083

o jogo é necessário sem vício ou mesmo com, pois está tudo na regra. mesmo para os que estão de fora, estão dentro. quem joga mal percebe, sente prazer e dor. quanto mais mesas abertas maior a ciência e é linguagem o que encanta o jogador. dormiu sem camisa no feltro verde desbotado, sonhou quatro naipes, dois dados, seis faces cada um. sempre foi assim, por que relançá-los? ganhou de tudo, carro, casa, ergueu igreja, matou um índio, deitou puta, perdeu dois filhos nessa rodada, ficou sem jogar... até isso é jogo. por sorte o morto volta. é sem porquê. embaralhar pra se jogar diferente. não se ganha nem se perde, mesmo quando nos perdemos. muda a rodada, a música e o jogo são a varar a noite. pelo prazer, pelo cigarro, pela dança, pelas coxas, pelo grupo ou só, paciência. por todos os ouros, todas as árvores, espadas e corações. por todas as faces, que são muito mais que seis. é dado sem vício.


ps: ... mais emprestado do que dado...
pps: azar dos que pensam que a vida é luta, morrem em batalha (rs)

domingo, fevereiro 26, 2012

# 082

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Não digas onde acaba o dia.
Onde começa a noite.
Não fales palavras vãs.
As palavras do mundo.
Não digas onde começa a Terra,
Onde termina o céu
Não digas até onde és tu.
Não digas desde onde és Deus.
Não fales palavras vãs.
Desfaze-te da vaidade triste de falar.
Pensa, completamente silencioso,
Até a glória de ficar silencioso,
Sem pensar.

"
Cecília Meireles
em Cânticos

segunda-feira, janeiro 09, 2012

# 081

Pois não recebe mais ninguém, mesmo que se entre e o pegue fechado com coração guardado, involuntário e farto. Já atendeu a todas as campainhas desta porta. Está a fugir de tudo agora, em busca do buraco que traga o herdado. Buraco negro, sem religião. A única esperança vem dos astrofísicos, porque no teto são tantos furos que não respondem e só gotejam dia-a-dia ordinário que até as baratas brincam de sair dali. E dançam. Não existe mais gravitação. A rota do planeta desenha uma elipse cada vez mais larga e gasosa. Nem lembra se é um ano a medida da volta que deu. Ou se é revolta. Não acha o negro. E a única estrela viva é o sol que aquece no momento do cigarro, onde tudo se esfarela em cinzas. Ao lado do ralo há o filtro de cada pensamento jogado, amarelo e viciado de tanto respirar naquele espaço. Seria possível renascer no corpo ainda vivo? Toda a memória até ali uma vida passada... um arroz com ovo assado sobre a geladeira é o último a que se cabe a memória atualizada, para que haja a trégua dos fantasmas e para que ajam os que restaram. Um olimpo frost-free à refrigeração avançada dos dias.