sexta-feira, novembro 12, 2010

# 074

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Laerte
em Folha de São Paulo (26/06/2005)

quarta-feira, novembro 10, 2010

# 073

...atravessa o limiar de uma nova idade
em que descobre Adão no espelho,
sem costelas perfeitas. (...)

terça-feira, outubro 19, 2010

# 072

De damasco o bolo e farelo de trigo, na esquina da árvore, ao chão: você me considerou. Não ía roubar às claras ele disse, mas mostrou a barriga e declarou fome, dois reais para comer. O senhor aceita um bolo? Dois pedestres no amarelo das relações. Cruzar aquela esquina foi por alguns passos não esquecer das luzes, pois não basta o sinal verde a um a não ser que o outro também o tenha. Ninguém o quis no farol e ele quis o bolo. Saindo da revolta do corpo sentou-se à sombra da árvore pra se iluminar mais calmo e comer depois de guardar o dinheiro.
O outro, levado pro intervalo da biblioteca, não teve café na tarde. E só tendo sobrado um teco, não pôs-se à mesa com a colega de trabalho porque sem muito a oferecer após o mendigo. Ofereceu a falta. Sem presença alguma da comensalidade, não soube dividir o pouco não dado do bolo que mal o alimentaria. Não percebeu ali o que sustentaria o espírito, doce na barriga dos que não têm fome de grão, sim de grandura. Fome que não é do corpo, nem da mente, da falta de alimento que não é do trigo, nem de damasco. A falta da consciência no instante que se dá por filtros de ilusão que enxergam pouco o que é claro: se há apenas uma maçã, ofereça a tampa. Ela ofereceu a dela, a fruta não seca, e com isso a realidade: há dois reais para comer. O óbvio de antes, de ajudar a um outro de classe, se ofuscou neste relance da impercepção com o mesmo, o outro semelhante com quem não soube dividir.
Só depois na sombra é que fica clara essa luz, quando a tampa da maçã na boca do estômago cobre os farelos da barriga adoçada. A digestão é um processo ácido que ensina e antes dela não há sabedoria, nem consideração.

terça-feira, setembro 07, 2010

# 071

O taxista é novo e grisalho, a vida também, e tudo roda na mesma bandeira porque há uma pra vida. É uma felicidade o dia e passageiro, por isso aproveita a corrida sem culpar o trânsito - preciso buscar quem for mesmo sem bateria, pois o que carrega é isso, sem perguntar quantos desceram.
A roda continua, sempre roda, e o mundo a estrada grande, a estradear no meio.

quarta-feira, agosto 25, 2010

# 070

São muitos os objetos, muitos. E o sujeito ausente se refaz na memória cheio de predicados, num pretérito imperfeito e subjetivo. Orações são coordenadas em nome do pai, do filho e do espírito () e toda essa abstração varre o pó da casa até que últimas migalhas da pele se juntem com pêlo do gato (a nova função sintática). Mas sempre resta um resíduo, porque são muitos os objetos, e cada resíduo é um princípio do ser...

sexta-feira, julho 30, 2010

# 069

Comer com a mão sem anéis nos dedos
e o garfo quase extensão de um osso.
As gerações se olham, um come o outro:
pai e fino, não se acha filho nesta mesa
- é da etiqueta humilhar com o olho.
Muita educação é necessária
para esse estágio além do humano,
pior que bicho, elegante.

sexta-feira, maio 21, 2010

# 068

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(...)
- Qual é a coisa mais importante para você como pessoa?
Zagallo ficou muito pensativo. Seu rosto demonstrava o esforço mais bonito do homem: o esforço de pensar e de se autoconhecer. Senti que estava sendo doloroso para ele escolher e que ele achava importante escolher. Finalmente disse:
- É não desejar mal ao próximo.
Mas tenho certeza de que ele quis dizer outra coisa. Aliado à sua expressão fisionômica, de repente sublimizada, traduzo o que ele quis dizer: amar ao próximo como a si mesmo.
- O que é amor, Zagallo?
É provável que ele, como a maioria das pessoas, nunca tenha parado o movimento de vida pra reflexionar sobre a vida, e sobretudo para se fazer essa pergunta capital: o que é o amor? Ficamos em silêncio apesar da pressa, pois Zagallo já tinha sido chamado várias vezes avisando que os jogadores estavam em campo esperando por ele. Mas o clima entre nós era de paciência. Afinal ele disse, e seu rosto ficou muito bonito quando ele disse:
- É um sentimento recíproco.
Depois pareceu aliviado de ter enfim definido o indefinível, animou-se mais e me perguntou:
- O que é que você acha dessa agitação dos estudantes no mundo inteiro?
(...)
"

Zagallo
em entrevista a Clarice Lispector

quarta-feira, maio 19, 2010

# 067

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(...)
Chega mais perto e contempla as palavras.
Cada uma
tem mil faces secretas sob a face neutra
e te pergunta, sem interesse pela resposta
pobre ou terrível que lhe deres:
Trouxeste a chave?
(...)
"

C.D.A.
em Procura da poesia

sábado, março 27, 2010

# 066

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Ela estava com soluço. E como se não bastasse a claridade das duas horas, ela era ruiva.
Na rua vazia as pedras vibravam de calor - a cabeça da menina flamejava. Sentada nos degraus de sua casa, ela suportava. Ninguém na rua, só uma pessoa esperando inutilmente no ponto do bonde. E como se não bastasse seu olhar submisso e paciente, o soluço a interrompia de momento a momento, abalando o queixo que se apoiava conformado na mão. Que fazer de uma menina ruiva com soluço? Olhamo-nos sem palavras, desalento contra desalento. Na rua deserta nenhum sinal de bonde. Numa terra de morenos, ser ruivo era uma revolta involuntária. Que importava se num dia futuro sua marca ia fazê-la erguer insolente uma cabeça de mulher? Por enquanto ela estava sentada num degrau faiscante da porta, às duas horas. O que a salvava era uma bolsa velha de senhora, com alça partida. Segurava-a com um amor conjugal já habituado, apertando-a contra os joelhos.
Foi quando se aproximou a sua outra metade neste mundo, um irmão em Grajaú. A possibilidade de comunicação surgiu no ângulo quente da esquina, acompanhando uma senhora, e encarnada na figura de um cão. Era um basset lindo e miserável, doce sob a sua fatalidade. Era um basset ruivo.
Lá vinha ele trotando, à frente de sua dona, arrastando seu comprimento. Desprevenido, acostumado, cachorro.
A menina abriu os olhos pasmada. Suavemente avisado, o cachorro estacou diante dela. Sua língua vibrava. Ambos se olhavam.
Entre tantos seres que estão prontos para se tornarem donos de outro ser, lá estava a menina que viera ao mundo para ter aquele cachorro. Ele fremia suavemente, sem latir. Ela olhava-o sob os cabelos, fascinada, séria. Quanto tempo se passava? Um grande soluço sacudiu-a desafinado. Ele nem sequer tremeu. Também ela passou por cima do soluço e continuou a fitá-lo.
Os pêlos de ambos eram curtos, vermelhos.
Que foi que se disseram? Não se sabe. Sabe-se apenas que se comunicaram rapidamente, pois não havia tempo. Sabe-se também que sem falar eles se pediam. Pediam-se com urgência, com encabulamento, surpreendidos.
No meio de tanta vaga impossibilidade e de tanto sol, ali estava a solução para a criança vermelha. E no meio de tantas ruas a serem trotadas, de tantos cães maiores, de tantos esgotos secos - lá estava uma menina, como se fora carne de sua ruiva carne. Eles se fitavam profundos, entregues, ausentes de Grajaú. Mais um instante e o suspenso sonho se quebraria, cedendo talvez à gravidade com que se pediam.
Mas ambos eram comprometidos.
Ela com sua infância impossível, o centro da inocência que só se abriria quando ela fosse uma mulher. Ele, com sua natureza aprisionada.
A dona esperava impaciente sob o guarda-sol. O basset ruivo afinal despregou-se da menina e saiu sonâmbulo. Ela ficou espantada, com o acontecimento nas mãos, numa mudez que nem pai nem mãe compreenderiam. Acompanhou-o com olhos pretos que mal acreditavam, debruçada sobre a bolsa e os joelhos, até vê-la dobrar a outra esquina.
Mas ele foi mais forte que ela. Nem uma só vez olhou para trás.
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Clarice Lispector
em A legião estrangeira