Na foto estaria toda a família. O pai não queria
aparecer junto porque estava muito magro, desfigurado pela doença,
um outro homem na cabeça dele. Não queria deixar aquele corpo como
registro. Mas não se esquivou assim ao olhar o rosto da filha. Disse
que ainda estava de pijama, descabelado, que tinha antes que cuidar
do papagaio. Era manhã de domingo e a mãe sabia que aquela ação
iria pelo menos até o almoço. Depois o cansaço da sesta, a espera
da sobremesa, o início do jogo, o final da Copa, um café ao
escurecer, sem luz. Uma recusa completa. Sabia ler o código, o que o
papagaio queria dizer, todo o tempo que levaria para limpar a gaiola
do bicho e a cadeia de ações. A sua filha pegou essa máquina
emprestada na escola só para tirar essa foto. Mentira, pensou. A
filha também, mas concordou com a mãe ficando em silêncio, para
convencer o velho. Não queria mentir a ele, ainda mais agora, tão
doente. Acreditava que ele estava num ponto do sofrimento do corpo
que passava a perceber melhor a verdade, como se a doença oferecesse
isso, o atrás da máscara. Quanto mais grave, mais clara a visão.
Clarividente. Ao mesmo tempo ele não discordou de nada, ficou em
silêncio também, pois nunca tinha visto a filha com uma câmera
reflex na mão e com uma bobina de filme preto e branco. Uma câmera
com filme, reparou. Muito esforço fora do tempo de adolescente para
uma manhã de domingo. Talvez seja verdade. Viu o esforço da filha
em colocar o filme sem velar.
A máquina era da vizinha, tinha acabado de emprestar. Seria para tirar-lhe uma foto antes que partisse, terminou de dizer. Não quis dizer morrer à vizinha tão nova, disse antes que partisse como quem viaja e não volta, como quem deixa fotos e está sempre presente ao ser evocado na imagem. Mas a vizinha entendeu que o verbo usado se referia ao pai da pedinte, pois numa fração do instinto sentiu que o verbo partir poderia se referir a qualquer um ali, até mesmo a elas que se olhavam na porta. Não a convidou a entrar, deu-lhe a câmera emprestada. Só tinha aquela, com filme preto e branco. O pai não deixaria emprestar as digitais. Era bem mais nova a vizinha, menos de dez anos, idade em que se emprestam as coisas dos outros sem se perceber o real valor de cada objeto. As câmeras digitais eram apenas mais novas, não melhores, nem mais caras. Pensou até em não emprestar nada quando a amiga lhe pediu, mas todos ali na rua sabiam que ela era a filha do fotógrafo. As fotos taggeadas, a frase "minha pequena modelo" como nome de pasta entre os álbuns do perfil do pai. Não tinha como negar, era uma menina com um book, ninguém tinha uma imagem tão profissional quanto a dela entre os seus amigos da rede social. Em algumas nem parecia tão criança, madura nos instantes congelados. Mas a vizinha lhe veio assim de supetão e a pegou em movimento, desarmada e completamente jovem. Não sabia o que era câncer ainda, e isso a abalou. Empresto a máquina sim, vou ver o que meu pai tem. Subiu a escada do sobrado e foi procurar uma câmera enquanto lembrava o nome da amiga. Laura, lembrou depois, dos posts do Facebook, que não era da escola mas vizinha, a do pai com câncer. Pensava num caranguejo sempre que lhe diziam essa palavra, pois assim lhe foi apresentada desde que nasceu em julho. Não é isso, é uma doença, como se espalhasse no corpo um veneno de escorpião. Eu sei que quer dizer mais de uma coisa essa palavra. Interrompeu-a porque a imagem de um escorpião não a ajudaria a entender agora, formaria ainda mais o abstrato na cabeça, como um mapa astral de Susan Miller, ou Horácio Quiroga lhe predizendo uma má sorte no horóscopo do dia. Se baterem na sua porta, é porque você pode atender, Câncer, 13 de julho de 2014.
A máquina era da vizinha, tinha acabado de emprestar. Seria para tirar-lhe uma foto antes que partisse, terminou de dizer. Não quis dizer morrer à vizinha tão nova, disse antes que partisse como quem viaja e não volta, como quem deixa fotos e está sempre presente ao ser evocado na imagem. Mas a vizinha entendeu que o verbo usado se referia ao pai da pedinte, pois numa fração do instinto sentiu que o verbo partir poderia se referir a qualquer um ali, até mesmo a elas que se olhavam na porta. Não a convidou a entrar, deu-lhe a câmera emprestada. Só tinha aquela, com filme preto e branco. O pai não deixaria emprestar as digitais. Era bem mais nova a vizinha, menos de dez anos, idade em que se emprestam as coisas dos outros sem se perceber o real valor de cada objeto. As câmeras digitais eram apenas mais novas, não melhores, nem mais caras. Pensou até em não emprestar nada quando a amiga lhe pediu, mas todos ali na rua sabiam que ela era a filha do fotógrafo. As fotos taggeadas, a frase "minha pequena modelo" como nome de pasta entre os álbuns do perfil do pai. Não tinha como negar, era uma menina com um book, ninguém tinha uma imagem tão profissional quanto a dela entre os seus amigos da rede social. Em algumas nem parecia tão criança, madura nos instantes congelados. Mas a vizinha lhe veio assim de supetão e a pegou em movimento, desarmada e completamente jovem. Não sabia o que era câncer ainda, e isso a abalou. Empresto a máquina sim, vou ver o que meu pai tem. Subiu a escada do sobrado e foi procurar uma câmera enquanto lembrava o nome da amiga. Laura, lembrou depois, dos posts do Facebook, que não era da escola mas vizinha, a do pai com câncer. Pensava num caranguejo sempre que lhe diziam essa palavra, pois assim lhe foi apresentada desde que nasceu em julho. Não é isso, é uma doença, como se espalhasse no corpo um veneno de escorpião. Eu sei que quer dizer mais de uma coisa essa palavra. Interrompeu-a porque a imagem de um escorpião não a ajudaria a entender agora, formaria ainda mais o abstrato na cabeça, como um mapa astral de Susan Miller, ou Horácio Quiroga lhe predizendo uma má sorte no horóscopo do dia. Se baterem na sua porta, é porque você pode atender, Câncer, 13 de julho de 2014.
O irmão mais velho da família estava na feira a
comprar melão. O pai doente tinha lhe pedido em segredo isso na
noite anterior. Estava com desejo de melão. Achou absurda essa
revelação pelo modo que lhe chamou como filho. Henrique, Henrique.
A mãe gritando seu nome, enciumada, e depois dizendo que o pai
queria lhe falar a sós no quarto. Foi fazer chá enquanto eles
conversariam, mas já iria trazer. Traçou assim um tempo,
orquestrando ao mínimo as revelações possíveis. Homem a homem,
ficaram os dois no quarto sobre a cama. Ele é o mais velho, sabia já
a senha das contas, ajudava em todas as questões dos Bancos, todos
os segredos se lhe podiam confiar. Que este homem ainda tem a dizer?
Quero melão, não o amarelo, o japonês, aquele rugoso. O filho
o olhou sem entender. Não fala pra sua mãe, ela vai achar que é
frescura. O filho concordou com a cabeça como quem recebe um trote
surrealista do além disfarçado em trajes de dia-a-dia. De algum
modo isso o fez perceber o momento, mais real e verdadeiro, como o
dom espalhado da doença que revela por delírio. A pele do seu pai
estava amarelada e lisa, o melão não, não poderia. E o mais óbvio,
eram japoneses. Sansei, na verdade. O pai nissei. De todo modo,
japoneses, como o melão assim vendido na feira, mas plantado nessa
terra. O leito da cama em febre lhe rememorava as origens, pensou,
como se aquilo viesse naturalmente por estar perto do fim. Lembrou do
altar de incenso na sala com o nome da família em kanji, o pai
desenhou os ideogramas, que ele, por ser mais velho, seria obrigado a
cuidar. O primogênito. Herdou o cabelo e a voz, agora as orações e
as oferendas de alimento em culto a antepassados. Pensou tudo aquilo
em confusão, ouvindo o pai tossir seco e respirar com dificuldade. A
doença no pulmão, do tamanho de uma fruta. Tentou organizar assim
os pensamentos para não esquecer da memória ali formada, como um
feirante que empilha as pêras para elas não cairem de uma vez, uma
narrativa de cuidado, que as frutas ensinam sem frescura. A mãe
entrou com o chá. Serviu-os em silêncio. Todos, como numa cerimônia
de chá verde, mas era camomila.
A mãe ajeitava as flores do quintal para compor o
quadro da filha. Era domingo, mas estava acordada desde cedo,
desperta há muito tempo, sempre com energia. Sabia que cabia às
mulheres da família trazer graça ao cotidiano. Lembrava dos
aniversários, fazia surpresas, escondia ovos na Páscoa. Percebeu
que ensinou isso a filha e sorriu quando viu a menina com aquele
tamanho de máquina para tirar uma foto de todos, antes mesmo do
café. A graça não seria algo mínimo, pois é tudo o que nos mais
revela. Um insuflo de vida para qualquer instante que se congele. E
aquele tamanho de câmera, com película sem cores, a fazia ver que a
filha entendia isso, em plenitude. Todos tinham celular com foto, mas
ela buscou uma câmera. Preto e branco. Percebeu que a filha
adolescente não era mais menina, mas mulher. Não pelo corpo, que já
estava mudado e menstruado antes mesmo do pai começar a ficar
pálido, mas em espírito. E material. Como as sutis gradações da
prata quando imprimem os cristais no papel de fotografia, para então
desenhar contornos, em tons sutis de cinza que nunca chegam ao preto
puro, e revelam assim melhor a idade. Uma maturação perceber tudo
isso, pensou. Você vai tirar essa foto, vou pegar um paletó pra
você. E subiu ao quarto para pegar um paletó ao marido. Intuiu que
ele não queria aparecer daquele jeito na foto, mas o paletó com
ombreiras lhe resgataria o corpo do passado. Escolheu o azul mais
claro, chegou a pensar que ficaria melhor numa foto em preto e
branco.
Não vou tirar foto agora, o Henrique nem chegou. Como
não, pai, ele tá na cozinha. Tinha acabado de chegar. De fato não
o ouvira, de tanto que o papagaio lhe cantava na orelha o hino
nacional. Deixou o pássaro no poleiro e foi à porta da cozinha, viu
o filho colocando melões na fruteira. Sorriu. Sorriu ainda mais
quando viu sua esposa lhe trazendo um paletó, toda contente. A mesma
graça de sempre. Viu ali uma família num domingo de manhã, e ele
sem ter mais como resistir. O corpo já estava mais livre. Colocou o
paletó, e pediu para tirarem a foto na parte de fora da casa,
debaixo do papagaio. Vai parecer um índio de cocar, pai. A luz ali é
melhor. Foram todos pra fora. Henrique sem entender seguiu, já tendo
aceito os trotes da vida. A mãe chegou a colocar uma flor no cabelo.
O filho se agachou. Laura, tensa com os recursos mirou no visor
esperando a agulha do fotômetro. Você sabe mexer nisso? Cala a
boca, disse ao irmão. O pai riu. A mãe reanimou a pose de todos, a
não deslegitimar a filha. Uma foto importante da família. Até o
papagaio em silêncio. Só o pai de paletó e pijama.
2 comentários:
(à querida Thais Fujinaga)
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