Contou até onze mas
depois lhe vinha apenas uma dúzia. Poderia seguir com treze,
catorze, ao infinito, parou no onze com uma dúzia. Apenas a palavra,
sem número... o que vem antes? E lembrou de culturas
tribais que compunham frases inteiras para exprimir um número. A
palavra antes de tudo, o verbo no início. Balbuciava baixo, contando as crianças enquanto apertava o balão. Elas o olhavam como quem contava as voltas numa tabuada do olhar pelos
gomos da bexiga. Um ábaco a bexiga. Duas vezes seis. Era esse o número de voltas a
dar. Meia dúzia de crianças no salão. O palhaço sabia o que era o
seu dobro, só não se lembrava do número, a forma escrita arábica,
e dobrava a comprida bexiga até formar a cabeça de um cão.
Definia um cachorro amarelo em suas mãos com ar da bomba de uma
bicicleta pois dessa vez não trouxe o cilindro de hélio. Esqueceu
também... como? A mulher que o contratou o olhava impaciente ao perguntar. As
bexigas não voavam ao teto como prometido, restavam ao chão num
canil de látex com uma só flor. Uma margarida de borracha. Sabia
fazê-la de cabo verde e pétalas de outra cor, corola colorida. Corolida. Achava graça no trocadilho infame ao ensinar a margarida de bexiga. Mas
ninguém riu. Não entendiam de palavras e faltou gás hélio pra dizer
isso às crianças em outra voz. Quantos cachorros fizemos? Sete,
contaram no chão. Faltariam cinco e então lhe responderiam
desenhando o número. Fez a flor antes para se acalmar, estava aflito
com a amnésia pontual. Seria algo no cérebro, vascular. O branco de
um número. Seu pai teve às voltas dessa mesma idade um derrame, na matemática
genética. Distraiu-se com a flor corolida. Deu-a à mulher que o
contratou pelo catálogo. Ela segurou por um tempo, fez que a
cheirava como se entrando no espírito do jogo pelo filho, depois jogou ao chão.
O salão de jogos e festas, um cubículo do prédio com paredes de
vidro. Um aquário em mar de balões e cães de borracha. Todos
ao chão, só ele de pé a repetir mecanicamente o movimento. E a
contratante numa cadeira, ao lado da mesa de doces. As crianças
queriam o cão. Repetiu mais uma vez o cachorro, ao ponto da mulher
duvidar se ele sabia fazer algo além daquilo. Tinha errado: O senhor é palhaço? Sim. Mas também faz mágica?
Posso fazer. Um pacote. Comprou bolo de morango na padaria, aumentou
os salgadinhos. Economizara um tanto que nem sabia. Qual valor de um
mágico, mãe? Vai ter palhaço, filho. Eu quero um mágico. E
resolveu assim o presente do menino, com mágica de palhaço, o sumiço de um número.
A festa de
aniversário está triste, pensou o aniversariante. Estranha, num
problema bobo de matemática infantil: não tinha crianças. Algumas
poucas no meio de outros adultos. Era o meio de julho, o meio das
férias da escola, do clube. O meio de tudo. Ninguém viria pois,
viajando. Ninguém se lembra no meio de outra ação. Até ele mesmo
viajara com sua mãe das outras vezes. Mas esse ano pediu uma festa,
como as das outras crianças da escola. Uma festa com um mágico era
o que queria, como os que passavam na televisão, com lábios
pintados de preto. Os mágicos, que apareciam até em programas de
culinária, viriam ao seu aniversário. Uma ilusão. O que lhe veio
foi um palhaço, contratado pela mãe num pacote barato. De batom
vermelho e borrado. E as crianças da escola, nenhuma. Conjunto
vazio. Meia dúzia de vizinhos por conta da comida de graça, nem amigos de verdade. Ilusionistas. O palhaço ainda chegou
atrasado, todo apressado. Pingava gotas brancas do rosto. Tinha se
maquiado no carro, mas já suando de nervoso. Tinha na noite anterior
saído com os amigos do grupo do teatro vocacional e esqueceu que no
dia seguinte à tarde tinha que animar uma festinha. A mãe o
contratou com esse diminutivo. Uma festinha simples, sem ter muito
como pagar. O diminutivo adequava o pagamento. Queria continuar na
escola de teatro de algum jeito, aceitava os bicos para pagar o
curso. Um dia faria a mágica de comer e viver do que escolheu,
profetizou. Foi essa verdade que disse à mulher ao ser questionado.
Não respondeu exatamente assim, tão pleno e claro, mas que poderia
fazer tal mágica, por essa perspectiva. Nada além. Sem truque. Os
palhaços são realistas, não mentiu ao telefone. No salão do
prédio a mulher que o contratou o esperava sem saber dessa
integridade. Estava toda arrumada, mas cheirando a suor. Íntegra
também. Tinha enfeitado o aquário com balões grudados nos cantos e
nas paredes, mas que aos poucos foram caindo, como as gotas da pele.
Ela tinha maquiado a sobrancelha de modo permanente para não se
borrar mais, pseudo-tatuagem de salão estético, uma curva marrom
sobre os olhos. Sempre triste agora. Não tinha pêlos a definir
outra expressão. Olhava para ela sem conseguir disfarçar, a
sobrancelha estava torta. E ela o inquiria pela maquiagem, desfeita.
O menino olhou o encontro dos dois, desejou sumir. Queria uma mágica,
sumir dali. Mas era seu aniversário. Não se sabia naquele instante
qual a pior máscara no rosto.
O palhaço era um
menino. Tinha mais de vinte anos, mas era um menino, no jeito e na
estrutura, não tinha se desenvolvido direito. O achavam burro por
isso, como se retardado de algum modo. Um amigo falou isso a ele uma
vez. Não tinha amigos, mas esse o xingou. Gerou vínculo assim. Meu
amigo, pensou. De fato um bobo. Lembrou dos bobos de Goiás que seu
pai lhe contava, filho de casamento entre primos, consangüíneos,
sempre nascia um com alguma idiotia. Não serviam a mais nada além
de trabalhos desimportantes e repetitivos. Lhe trouxe um bobo pra
ajudar no quintal. A casa em reforma do pai. Se emprestavam os bobos
na época, para carregar pedras, construir calçadas. Alguns nasciam
mudos, outras surdas, e eram por isso ainda mais servis. Serviam ao
descarrego da violência cotidiana, na dose que cabe a todo dia. E a
noite o cú. Bobo ou boba, se serviam dos seus cus. Não teriam
depois como reclamar, não gerariam filhos. E eram todos sem voz,
mesmo que não fosse mudo. Mesmo os que sabiam e não eram bobos,
nada falavam. Não se ouvia. Mesmo se não fosse noite. De dia, atrás
do muro construído, perto do tanque em reforma, depois da marmita
que ela trazia. A boba. Era isso junto ao prato de comida. Uma
sobrevivência. Não é melhor viver? Não é melhor pensar. Por isso
ainda mais bobo se ficava e se seguia. Seguiam todos, não só em
Goiás. Todos os dias, no mundo. Não reparava se o filho era também
mais um. Não via o sangue. Não lembrava se a mulher com quem deitou
era uma prima. E o filho se dizia artista, podendo ser tudo então, o
que o torto permitia. Até filho de uma prima. Não sou bobo, pai,
sou artista. Um palhaço, com namorada. Não dava o cú.
Tinha rompido com a
namorada antes da festa. E foi beber com os amigos. Colegas, do curso
de teatro. Todos atuam. Bebeu demais e queria traí-la. Mas não
teria mais como, ela terminou antes. Era esperta, mais que ele.
Rompeu. Apenas bebeu então, pra não pensar mais. E acordou tarde no
dia da festa. Viu a mulher que o contratou, daria festinha ainda.
Interpretava pelo sexo essa palavra, o diminutivo. Canastrão. Assim ouviu a voz
ao telefone. Era marcada do tempo, tinha um filho que fazia hoje oito
anos. Mas daria. Cheirando a suor. Entre os dois seios o perfume.
Levemente erguido. Chegou assim, nessa malícia adulta totalmente em
descompasso ao ambiente de crianças. Brigadeiros, beijinhos.
Beijinhos. A linguagem teria que ser outra, não entenderiam
trocadilho. Todos bobos para ele, naquele momento. E imaginou a
sodomia, levemente excitado, como se enchesse uma bexiga a bomba. Uma
camisinha. Se assustou com a pequenez do pensamento e o próprio corpo onde já
estava. Da bexiga à mãe, depois ao filho. A passar a violência do
dia-a-dia na sua mente atrás da máscara. Atrás da calça. Atrás
do rabo. Como peixes que se comem num aquário para sobreviver. Um
peixe humano. Gotejando branco. Não lembrou o que fazia. Era um
cachorro. Desimportante, repetitivo. Mediu o rosto com a própria mão
a imaginar o estrago do suor na face, enxugando as extremidades. Em
vergonha, sem sustentar a cena. Repetiu para se concentrar em alguma coisa. Pensou em
números. As crianças o viam tocar as bordas da face como se tomasse
alguma medida para a escultura. Como no tempo antigo, nas medidas de
construção judaica. Um côvado, um palmo. Um rosto. O palhaço
judeu, a judiar bexigas. Pensava no absurdo a que sua mente o levava e resolveu contar
as voltas da bexiga, formando a imagem de números em sua cabeça.
Nove, dez, onze... uma dúzia. Não sabia mais formar o doze. Esqueceu.
Formava apenas a palavra e o cachorro em suas mãos. Um dia triste.
Queria um coágulo que lhe tapasse essa lembrança e não o número.
Quando foi ver, duas cabeças no mesmo cão. Contou errado. O cão
coxo, sem pernas. Piada do inferno. Cérebro em falha... ou Cérbero? O cão solto
da mitologia, mais antigo que os judeus, com duas cabeças apenas, um trocadilho. O
homem sempre o mesmo, a perder-se nisso. Desimportante e repetindo... A mulher se indignou.
O ar pesado descia
os ombros e os balões. O pulmão é também uma bexiga. Quanto mais
respirava mais se contaminava e o que exalava não era alívio. Até
onde aquele dia? Queria esvaziar do ar o ambiente. Mas enchia balões.
E estavam todos ali, no meio de tudo. Na volta longa em torno do Sol
junto ao menino, a volta no eixo da Terra em pleno julho. Em pleno meio. O meio
elástico que envolve todo mundo, ar viciado e todos ali, no meio de tudo, uma bexiga. Estourou. As crianças viram o relógio atrás do
palhaço e pediram algumas para irem embora. Fica, vai ter bolo, a
mãe falava, tudo o que o menino não queria. Vamos colocar uma
música. Era essa a deixa ao palhaço na gravidade da voz, sem hélio. Fim do número
de mágica que não vinha. Não mais número, nem mais festa, nem
palavra lhe servia. Ele se virou e piscando viu atrás de si um relógio
pendurado. O 12. Ali o início e o fim de
tudo, o devir de toda hora, todo minuto. Da volta menos longa até um
dia. O doze ao alto, não a dúzia. Ficou paralisado ao ver o número,
como o cachorro deformado em suas mãos. O número bonito que não
vinha e veio todo borrado de um derrame, a máscara desfeita que
caía. O palhaço retardado ao fim de tudo. A mãe no som, desligada,
não mais ouvia. E o presente do menino a realidade, com mais
salgado à mesa até o outro dia.