Ía chover e o veneno se espalharia pela terra. Desde manhã, o homem com a máscara borrifando os cantos, a descupinizar a casa. Mas precisa pôr no mato? Eles vêm do terreno, senhora. E o quintal era largo, com terra revolvida, largada até onde galinhas ciscavam o milho de ontem. Porque hoje vai ter veneno e não pode ter comida no chão, o menino falava aos bichos, catando os grãos. Não com o macho velho que cantava de galo e atacava com espora, falava às fêmeas e o pintinho que o acompanhava.
Só tinha um sobrevivente. Dos cinco ovos da poedeira, um rolou pelo desnível e apodreceu. Os outros quatro nasceram, mas no desespero da chuva de início do ano, três caíram numa vala que juntava poça. Não sabiam nadar como a pata do Natal, e a galinha mãe, num ato mais automático que o de ciscar, pulou em cima pra proteger. Os pintinhos tentaram ali abrir um guarda-chuva num mesmo movimento, mas escorregaram na lama todos e ela os pisoteou com as patas. Foi tudo num raio, a água encheu e eles transboradaram na cova. Tá vendo, se seu pai tivesse arrumado o quintal, não teria nada disso. O menino chorou, de tristeza e raiva, da chuva e do pai que não preparou o terreno. Decidiu não fazer nunca o mesmo: criaria o que sobrou como se fosse um filho.
Dez anos e era pai. O que sobrou foi o marrom, o único que não parecia ser da que chocou, mas sua generosidade em dar calor a todo ovo que se apresentava a fez criá-lo até grandinho. Depois do incidente, o pequeno passou a dar mais milho num conforto do luto e, por comerem mais, achou mesmo que sentiam a perda. O marrom se consolou tanto em grãos que cresceu rápido, já do tamanho do pé adotivo. Você vai ficar forte, que nem eu. E o acarinhava na cabeça quando ele o permitia, numa falha breve do instinto pela criação adquirida.
Mas o instinto é sempre mais forte e no primeiro trovão foi logo se esconder num canto. Não pode ficar aí. Pegou o engradado para guardá-lo, porque tentou na mão mas não conseguiu nada além da fuga. Entra aí, levantou a portinhola de metal. Outro trovão, o pintinho se assustou. Pulou mais, encurralado: paredes, menino e nuvens. Tá com veneno o chão, empurrou o engradado pra que ele entrasse forçosamente no vão livre que a portinhola suspensa oferecia. Entrou desesperado e, no estabanar dos novos, deixou cair a porta sobre a cabeça. O miúdo chocado se paralizou. Um corpo marrom de cabeça pênsil se debatia num engradado. NÃO! Não entendeu aquele momento e não reconhecia o fato. Não! O corpo marrom no engradado. Tirou o pintinho que se estrebuchava e tentou repor a cabeça no lugar. Mas estava longe, fora de si, e tudo o que fazia com o corpo era em vão.
A chuva começou a pingar e os cupins saíam da terra. O veneno era forte e já apresentava efeito em alguns pontos. A vida é curta pra quem deseja viver, e na luta, demoraram a se entregar. O menino continuava observando, pequena ave a se mexer, galinho de briga. E veio a água com tudo e soluçou até perder ar. Não sabia que podia matar, descobriu. Filho? Filho, que foi?! Eu ía guardar, mas eu matei! A ave parou e o pai o pôs sob o braço, protegendo da chuva, sem entender direito. O filho só queria isso: proteção, da chuva, do veneno, a proteção do pai. O resto foi sem querer. Descobriu que podia matar e quis se proteger disso também.
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